domingo, 31 de agosto de 2014

Arte & Mercado


Como estabelecer uma relação de comprometimento com a atividade artística e seu foco de reflexão, sem deixar que interesses econômicos comprometam seus resultados estéticos e dialéticos? O exercício artístico profissional transita por campos imponderados que vão além da arte, e a necessidade de extrair desse exercício o sustento para viver, pode ser uma armadilha ardilosamente perigosa. Para o artista profissional, se faz necessário um policiamento permanente, para que mudanças de rumo na carreira, e na forma e conteúdo das suas obras, não sejam justificadas por babéis argumentativas, servindo apenas para dissimular um notório descomprometimento com a sua arte, em prol do mercado. Nesse caso – se percebida a influência econômica no conteúdo programático do seu processo, na organicidade da sua prática, no resultado da sua obra – recomenda-se o desvinculo profissional, para não comprometer seus resultados artísticos. A mudança de fonte de renda, buscando a independência financeira através de outras atividades, pode proteger o artista, desprendendo-o da falha argumentação da necessidade de se adequar ao mercado, pois, muitas manifestações artísticas, são impassíveis de adequação – conforme problematiza o fragmento de um manifesto nunca publicado, que utilizo aqui para concluir:

“[...] o teatro experimental, de pesquisa, de vanguarda, marginal, laboratorial, impopular – ou como queiram chamar o teatro que não busca apenas o entretenimento (Dicionário do Teatro Brasileiro/J. Guinsburg) – é dínamo incansável para o desenvolvimento sociocultural e artístico de sua época. Esta opção artística não é compatível com as leis de mercado [...] por não objetivar o lucro como resultado final, e sim o questionamento, a revisão ou a transgressão dos valores sociais, políticos, estéticos e culturais da sociedade onde se manifesta.

Obra de arte não é produto – afirmação herética para os liberais de plantão. Torna-se produto dependendo de uma série de fatores e circunstâncias que dialoguem com o mercado vigente.

Se uma obra, posteriormente à sua criação, polariza opiniões, acaba afugentando os investimentos que tem por prática valorizar o consenso. Porém, uma obra digna não deve abrir concessões no momento da formulação do seu dizer: está aí o paradigma que incompatibiliza obra de arte e mercado [...].”

Ofereço o pano para a manga. Traga a agulha e a linha.


13 comentários:

Hamilton disse...

Cara, pois é... e o parceiro Assis Medeiros pergunta: "Por que que hoje tudo tem de ser pop?" Pergunta para si mesmo, no processo criativo, e vive o drama que a questão envolve. Mas lança a canção no ar, e o vento leva. E não ocorre assim com toda obra? O vento leva... o tempo passa, e os leitores reapropriam-na, além destes, também os atravessadores que aprendem, com o tempo, a transformar (forçar) o que era arte em produto... (gostei dessa conversa, volto aqui depois, até já)

Rodrigo França disse...

Argumento muito! Muito interessante. Contudo o mercado opera de forma flexível. O que antes era contracultural apresenta-se com valores mainstream e, independente do comprometimento estético, uma prática que julgamos isenta das forças reprodutivas do sistema na verdade colabora e a fortalece.

Rodrigo França disse...

Sistema reprodutivo do capital.

Marcelo Flecha disse...

Complexo demais para um comentário, Rodrigo. Prefiro que você venha aqui em casa me explique tintim por tintim. Aproveita e traz o Hamilton (que eu imagino você não conheça) que faz tempo que ele não aparece também. Abraço, queridos!

Jorge Choairy disse...

O pop não poupa ninguém, Hamilton, já dizia aquele filósofo gaúcho.
Enquanto isso vou bem ali na Praia Grande comprar 1/4 de teatro.
Teatro com sessões.
Beso, Marce!

Rodrigo França disse...

Com certeza meu querido! Abraço!

Hamilton disse...

Pois... Se ontem o Pop na arte foi um contra-ataque da arte ao mercado, na forma de um míssil lata de sopa, hoje, a economia da lata pode também ser percebida como o conteúdo da sopa, da arte.

O mercado não poupa ninguém, nem o pop escapole (parafraseando o gaúcho bem lembrado por Jorge).

Derivando um pouco o assunto aqui para minha seara, vi recentemente documentário televisivo sobre a compositora Marina Lima, ela dizia (cantando glória ao mesmo tempo lamentando o fato) que nos idos de 1982-83 o mercado não sabia o que fazer com ela... porque, ocasionalmente, ela não cabia nos rótulos já existente naquele contexto industrial da música pop... obviamente, e rapidamente, o pop aprendeu com Marina e o mercado a vendeu (ou ela se dobrou às leis? Bom debate).

Imagino que, para um operador de mercado, que deseja dirigir e controlar um "produto", o mais justo seja pagar depois da arte realizada ou do objeto artístico criado, e não antes quando o artista ainda não disse o que dirá (e não se sabe se o que dirá é conveniente, ou compreensível - lucrativo)... ou então controlar a criação usando as tais "leis", leis que dobravam até os "gênios" no passado remoto (porque os "gênios" de hoje em dia, ou mais próximos de nossos tempos, se pensam incontroláveis).

Mas, as leis, de/no mercado, não controlam nada. Controle não se exerce com lei, mas com força e poder. Leis que não levam à manutenção do poder ou ao lucro sempre foram trocadas por outras mais eficientes.

E a arte? É uma lata com o espinafre do contra-poder?

Hamilton disse...

Rapaz, conversar sobre esse negócio do "sistema reprodutivo do capital" do qual o Rodrigo falou vai levar umas dez garrafas de vinho, Marcelo. Jorge tem que participar porque se não a gente não dá conta...

Marcelo Flecha disse...

Boa, Hamilton. Eu acredito e oficio a arte como instrumento de contra-poder. Quando ela se torna imprescindível — dentro da sua inutilidade — o poder se rende a ela, e subverte o discurso, bradando que a arte se rendeu (não conheço profundamente o caso, mas o exemplo que tu deste da Marina pode ser um). Difícil é atingir esse grau de excelência... Motivo para outra conversa! E vamos aos vinhos, Jorge, Hamilton, Rodrigo!

Alberto Júnior disse...

Vou "mimeografar" este texto e discussão para distribuir naquelas várias casas de teatro que existem na zona sul do Rio de Janeiro. Quem sabe a OI - Teatro para Todos não patrocina minha viagem?

Abraços, homens inquietos.

Marcelo Flecha disse...

Boa, Alberto!

Flávia Teixeira disse...

puts... tenho muitas questões a resolver ainda a respeito disso!
O que tem se revelado é que há sempre vários caminhos... e aí as escolhas... que nos definem.

Ao mesmo tempo que gostaria muito de sobreviver com o meu trabalho...e por isso sei bem dos mecanismos cruéis e claros que existem para que isso aconteça.

Tenho escolhido me perder e viver entre o limite desses mundos... e continuar tentando por outras brechas e continuar acreditando nos desvios. E principalmente confiando nos que vieram antes e na sua sabedoria...

Embora a dita arte tenha seu mercado, seus editais e guias de conduta... tentamos ser diferentes...será que conseguimos? O mercado de arte está aí e também é sedutor...é preciso estar atento e não somente com o discurso afiado...

Pois de discurso afiado o mundo está cheio... E é só sentar no buteco, ou abrir a pagina do facebook que logo reconhecemos um mundo cada vez mais cheio de opinião.

Mas como disse bem Brecht: Pensar e não agir continua sendo não pensar.

Enfim vamos pra a sala de ensaio e lá minhas questões se tornam concretas! Ou se esvaziam ao primeiro ato.

Vixe que se deixar eu vou embora...rs

Marcelo Flecha disse...

Esse é um assunto que a gente precisa aprofundar pessoalmente, Flavinha, porque vejo que tem sido motivo de suas reflexões. Espero nos encontrarmos em breve.