Caro
Marcelo,
Finalmente
ontem, depois de tanto esbravejar com a Lei de Murphy, com os corpos celestes e
com as entidades divinas, consegui assistir ao espetáculo Velhos Caem do Céu
Como Canivetes. Enquanto aplaudia aquela brilhante produção, tentava me
recompor do estado de êxtase que me fora proporcionado. Não o êxtase da
alienação, não o “não saber de mim”; mas um outro tipo de êxtase: o êxtase da
espectadora encantada. Lembro-me de ter visto partes daquele cenário quando
daquela agradável conversa que tivemos sobre o Quadro de Antagônicos, na época
em que eu escrevia meu TCC. Agora ali, com os atores e a luz, nem pareciam mais
os mesmos objetos. Foi como se, de repente, aquela cena fosse o outro lado do
espelho... Pois bem, vou deixar de meus devaneios poéticos e antipáticos.
O
espetáculo me fez pensar acerca de muitas coisas. A primeira delas, e talvez a
mais importante ou a que resume as demais, é a potência do discurso teatral, e
a multiplicidade de escolhas que o geram. Fala-se de muita coisa durante a
peça, mas o ponto para o qual tudo converge é um só: o ser humano e sua
existência – seja ela miserável ou não, falida ou não. Fico pensando sobre os
últimos bons trabalhos que vi, e me dou conta de que esse é um tema muito bem aproveitado
quando – parafraseando você – se tem algo de importante a dizer. Importante só,
não. Visceral. Claro que alguém pode retrucar: mas e o ser alado? A história
dele não conta? Pra mim, o que parece é que o ser alado é tão humano quanto o
ser humano. Crescem nele, espelhadas, todas as inquietações humanas. Já não há
esperança para ele, e ainda assim, ele espera. Sabe que é um pária, e ainda
assim, quer voltar. Que maior e mais fino retrato da miséria humana, senão
esse? Outra coisa que fiquei pensando bastante foi a ausência de um
tempo-espaço bem delineados. Veja, não estou dizendo que não existem, estou
dizendo que pra mim pareceu que a peça acontece em "qualquer lugar",
a "qualquer tempo" (mesmo as latinhas de Jesus não me deram a
sensação de um pertencimento geográfico, e sinceramente, achei isso bárbaro!).
Na verdade, é como se fosse um instante de suspensão. Talvez o delírio do ser
humano, que vê uma galinha-anjo-morcego acabe chegando tão perto de mim que eu
não vejo ou não quero ver onde e quando esse delírio acontece... Quem sabe?
Talvez
o fato de conhecer o texto no qual a peça foi inspirada tenha ampliado em mim
alguns direcionamentos de olhar. O fato, por exemplo, do ser humano não ter se
espantado com um ser alado caído em seu quintal remete à uma das primeiras
partes do texto de García Márquez. Conhecer esse detalhe talvez tenha feito com
que eu admirasse o trabalho ainda mais, pois o autor de Velhos... parece ter
encontrado soluções simples, físicas e sutis para os ditos e não-ditos do autor
do primeiro texto. As cores do espetáculo também são de uma beleza... Não só a
cor da luz, mas a cor dos elementos de cena, a cor das personagens, a cor do
tapete que delimita o espaço. Sobre isso, tenho uma questão: como você chega à
cor nos seus espetáculos? Sempre vejo trabalhos com iluminações lindas, mas na
maioria das vezes, ou isso vem de uma incrível sensibilidade, ou de muita
sorte. Mas e com vocês, como acontecem essas escolhas? Para os olhos, acaba
sendo também uma festa, uma vez que as cores se afinam. Mas por falar nisso,
nada me pareceu mais afinado que a movimentação dos atores. Na fala de alguém
durante o debate, “a peça é um verdadeiro balé”! É como se a relação dual não
ficasse somente nos personagens e em seus antagonismos, mas também na própria
imagem do espetáculo e na forma como os atores se deslocam pelo espaço, dando
ao espectador a compreensão de dois mundos distintos, que ora se atraem, ora se
repelem. O mundo do ser humano e do ser alado? Também. Mas principalmente o
mundo dos que creem e dos que não creem. Dos que esperam e dos que desesperam.
E se parecem completamente diferentes a uma primeira vista, conforme a história
acontece percebemos que essas diferenças têm a razão de serem contraditórias –
pra eles e pra nós. Sim, pra nós. Porque os velhos caem do céu como canivetes
não só no quintal de um ser humano descrente e sonâmbulo, mas cai no quintal
dos espectadores também. Acaba se tornando um morcego sideral dentro do nosso
espaço de existência também.
A
propósito, não decidi o que fazer com aquele ser alado. Uma galinha? Um
delírio? Um anjo? Um norueguês? Um morcego sideral? Talvez eu decida, talvez
não. Por enquanto, pra mim, ele é dúvida, mesmo quando crê.
Saúde,
luz e paz. E vida longa à Pequena.
Rute.
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