segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Entre luz e sombra

Em ritmo de férias acentuam-se os devaneios cotidianos que eu, presunçosamente, costumo catalogar, ora como pequenos ensaios, ora como croniquetas, ora como micro teses. Aproveito a Conexão Teatro para lembrar de uma perturbadora pergunta lançada em uma demonstração técnica que assisti na década passada e que fora oportunizada novamente no evento supracitado: quem são os seus mestres? Sempre tive inveja daqueles que têm a oportunidade de citar e enaltecer seus mestres. Artisticamente, fui nascido e criado em Balsas, no interior do Maranhão, na década de 80. Época sem internet, cidade sem livraria, sem universidade, sem teatro, sem cinema, sem arte – salvo a tímida resistência de manifestações culturais como o Reisado. Não tive mestres de teatro, e tive todos os que precisei. Aprendemos juntos, uns com os outros, o que ninguém sabia. Nesse caso, seriam meus mestres os livros? Se fossem, por consequência, poderia citar seus autores como tais, e eu teria o privilégio de ter mestres como Kantor, Barba, Grotowski, Artaud, mas não. Os ensinamentos que esses livros preconizavam não foram assimilados por mim como esses autores postularam. Eram apenas as tortas e trôpegas leituras que minha ignorância possibilitava fazer, desvirtuando totalmente seus objetos, objetivos e metodologias, contudo, era o que havia. As raras obras chegavam na mala de um primo, nos braços de um amigo, ou transviadas do seu caminho original e tratadas por nós como relíquias contrabandeadas de um mundo dito civilizado, ao qual não tínhamos acesso. Quando chegavam às nossas mãos obras como El Teatro de La Muerte, Hacia um Teatro Pobre, El Teatro y su Doble – todas versões castelhanas – um oásis parecia apresentar-se à nossa frente. Porém, o oásis era seco. Não havia mentor, um mestre que mediasse a leitura facilitando a compreensão dos dizeres. Tudo era um entender sem entender direito. Um estupro à teoria. Crueldade para nós era não haver universidade na cidade. Teatro pobre, para nós, era fazer teatro em uma cidade sem livrarias. Teatro da morte era sonhar em viver de teatro e saber que se morreria de fome. Oficina era a marcenaria do meu pai. Laboratório era o que se levava para a cena, e quem padecia com a experimentação era o espectador. Quando migrei para São Luís, mais de uma década havia caído desde o teatro de colégio, passando pelo teatro amador até receber minha primeira proposta profissional. O desastre já estava feito. Eu havia forjado uma maneira de lidar com o teatro, modelado um jeito de encenar, de fazer teatro; um jeito tosco, porém, autônomo – no melhor e pior sentido da palavra. Quando surgiu a oportunidade de conhecer meus novos mestres, eles me foram apresentados como pares, pelo simples fato de eu viver do ofício. Esse fator fizera com que as relações se estabelecessem horizontalmente. Quando digo que o mestre generoso é um eterno aprendiz, é porque a generosidade e humildade dos meus mestres me impediram de tratá-los como tal. Portanto, se eu tivesse que responder à pergunta eu diria, dissimulando certo constrangimento: meus mestres são os meus pares. Com eles aprendi tudo o que sei e aprendo tudo o que não sei. Companheiros, amigos, parceiros, irmão de arte. Atores, pesquisadores, diretores, produtores, dramaturgos, cenógrafos, iluminadores, teatrólogos, figurinistas, críticos, sonoplastas. Foi cada orientação generosa, cada papo interminável, cada imersão filosófica, cada crítica aguda, cada palestra oficina fórum ou acalorado debate que formaram o artista que sou. Sempre vampirizei meus achegados. Chupei cada gota de sangue no afã de suprir esse vazio deixado pela falta de uma formação com mentores. Penso que o vazio permanecerá. Uma eterna sensação de acefalia. Não me orgulho disso. Mas agradeço a cada um dos meus contrafeitos mestres que amenizam essa falta.

12 comentários:

Jovanns Ribeiro disse...

Cada vez mais do meu eterno professor Marcelo Flecha!

Unknown disse...

Mestre Marcelo, sempre leio seus textos com imenso prazer.

Marcelo Flecha disse...

Valeu, Jeovanns! Então é você, Sandro, o um leitor que sempre passa por aqui! (Risos)

Fernando Yamamoto disse...

Olha eu aqui!!!! Rsrs...

De forma menos drástica, aconteceu um pouco isso comigo também. Estava num lugar menos inóspito, e encontrei meus primeiros mestres mais cedo, mas o contato com o teatro se deu, pra mim, também pela intuição, pela via torta...

O resultado, acredito, é que quando o conhecimento sistematizado surge, já não vem como um monte de informação inacessível a ser perseguida, e sim um contraponto (ou uma confirmação) à experiência já vivida, e aí o aprendizado surge com uma potência muito maior!

Abraço, camaradinha. Muitas saudades de você!

Marcelo Flecha disse...

Salve, Fernando! Que alegria ler suas palavras aqui! De fato, há perdas e ganhos. Eu só acho que essa situação exige sempre mais estudo, para suprir a carência, o que deixa a gente mais neurótico, parece que nunca é o suficiênte. Como se precisasse atestar permanentemente certa competência. Enfim, saudades muitas, também!

Fernando Oliveira disse...

Lembro bem de você em Balsas. "O boi de catirina", que acredito ter sido seu esforço pra levar, foi marcante para mim. Assisti no Marista (eu acho). rsrs

Desertos disse...

Querido Marcelo! Eu tive e tenho muitos mestres! Você é um deles! E tenho muito orgulho de carrega-los comigo! Uns me escolheram, outros eu escolhi... o que sei é que cada encontro foi de aprendizado e me direcionou para outro... o que sei é que antes de entrar em cena...naquele momento que antecede o ato...eu sempre penso nos Meus e agradeço o encontro,os aprendizados e lhes desejo saúde e vida longa. Porque sinto que os carrego comigo em tudo que faço! Mas sei também que há aqueles que não precisam de mestres...porque são mestres de si mesmos! Essa é minha busca. Enquanto isso vou procurando estar por perto daqueles que me movem.
voltei!rs

Marcelo Flecha disse...

Flavinha! Você voltou! (Risos)Palavras tão precisas quanto o seu caráter. Como digo no post, é com vocês que eu aprendo. Obrigado por deixar-me permanecer por perto.

Rodrigo França disse...

Mas pedagógico impossível! Perde-se muito tempo tentando arremedar uma teoria. Este estupro e necessário! Parabéns!

Marcelo Flecha disse...

Caro Rodrigo, é uma delícia dialogar com você por aqui. Ultimamente, nosso maior frequentador. Obrigado por prestigiar-nos com a sua presença. E apareça pessoalmente!

Anônimo disse...

Que texto fantástico!




Marcelo Flecha disse...

Obrigado, anônimo!