Em ritmo de
férias acentuam-se os devaneios cotidianos que eu, presunçosamente, costumo
catalogar, ora como pequenos ensaios, ora como croniquetas, ora como micro
teses. Aproveito a Conexão Teatro para lembrar de uma perturbadora pergunta
lançada em uma demonstração técnica que assisti na década passada e que fora
oportunizada novamente no evento supracitado: quem são os seus mestres? Sempre
tive inveja daqueles que têm a oportunidade de citar e enaltecer seus mestres.
Artisticamente, fui nascido e criado em Balsas, no interior do Maranhão, na
década de 80. Época sem internet, cidade sem livraria, sem universidade, sem
teatro, sem cinema, sem arte – salvo a tímida resistência de manifestações
culturais como o Reisado. Não tive mestres de teatro, e tive todos os que
precisei. Aprendemos juntos, uns com os outros, o que ninguém sabia. Nesse
caso, seriam meus mestres os livros? Se fossem, por consequência, poderia citar
seus autores como tais, e eu teria o privilégio de ter mestres como Kantor,
Barba, Grotowski, Artaud, mas não. Os ensinamentos que esses livros preconizavam
não foram assimilados por mim como esses autores postularam. Eram apenas as
tortas e trôpegas leituras que minha ignorância possibilitava fazer,
desvirtuando totalmente seus objetos, objetivos e metodologias, contudo, era o
que havia. As raras obras chegavam na mala de um primo, nos braços de um amigo,
ou transviadas do seu caminho original e tratadas por nós como relíquias
contrabandeadas de um mundo dito civilizado, ao qual não tínhamos acesso. Quando
chegavam às nossas mãos obras como El Teatro de La Muerte, Hacia um Teatro Pobre,
El Teatro y su Doble – todas versões castelhanas – um oásis parecia
apresentar-se à nossa frente. Porém, o oásis era seco. Não havia mentor, um
mestre que mediasse a leitura facilitando a compreensão dos dizeres. Tudo era
um entender sem entender direito. Um estupro à teoria. Crueldade para nós era
não haver universidade na cidade. Teatro pobre, para nós, era fazer teatro em
uma cidade sem livrarias. Teatro da morte era sonhar em viver de teatro e saber
que se morreria de fome. Oficina era a marcenaria do meu pai. Laboratório era o
que se levava para a cena, e quem padecia com a experimentação era o
espectador. Quando migrei para São Luís, mais de uma década havia caído desde o
teatro de colégio, passando pelo teatro amador até receber minha primeira
proposta profissional. O desastre já estava feito. Eu havia forjado uma maneira de
lidar com o teatro, modelado um jeito de encenar, de fazer teatro; um jeito tosco,
porém, autônomo – no melhor e pior sentido da palavra. Quando surgiu a
oportunidade de conhecer meus novos mestres, eles me foram apresentados como pares,
pelo simples fato de eu viver do ofício. Esse fator fizera com que as relações
se estabelecessem horizontalmente. Quando digo que o mestre generoso é um
eterno aprendiz, é porque a generosidade e humildade dos meus mestres me
impediram de tratá-los como tal. Portanto, se eu tivesse que responder à
pergunta eu diria, dissimulando certo constrangimento: meus mestres são os meus
pares. Com eles aprendi tudo o que sei e aprendo tudo o que não sei.
Companheiros, amigos, parceiros, irmão de arte. Atores, pesquisadores, diretores,
produtores, dramaturgos, cenógrafos, iluminadores, teatrólogos, figurinistas,
críticos, sonoplastas. Foi cada orientação generosa, cada papo interminável,
cada imersão filosófica, cada crítica aguda, cada palestra oficina fórum ou
acalorado debate que formaram o artista que sou. Sempre vampirizei meus
achegados. Chupei cada gota de sangue no afã de suprir esse vazio deixado pela
falta de uma formação com mentores. Penso que o vazio permanecerá. Uma eterna
sensação de acefalia. Não me orgulho disso. Mas agradeço a cada um dos meus contrafeitos
mestres que amenizam essa falta.
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12 comentários:
Cada vez mais do meu eterno professor Marcelo Flecha!
Mestre Marcelo, sempre leio seus textos com imenso prazer.
Valeu, Jeovanns! Então é você, Sandro, o um leitor que sempre passa por aqui! (Risos)
Olha eu aqui!!!! Rsrs...
De forma menos drástica, aconteceu um pouco isso comigo também. Estava num lugar menos inóspito, e encontrei meus primeiros mestres mais cedo, mas o contato com o teatro se deu, pra mim, também pela intuição, pela via torta...
O resultado, acredito, é que quando o conhecimento sistematizado surge, já não vem como um monte de informação inacessível a ser perseguida, e sim um contraponto (ou uma confirmação) à experiência já vivida, e aí o aprendizado surge com uma potência muito maior!
Abraço, camaradinha. Muitas saudades de você!
Salve, Fernando! Que alegria ler suas palavras aqui! De fato, há perdas e ganhos. Eu só acho que essa situação exige sempre mais estudo, para suprir a carência, o que deixa a gente mais neurótico, parece que nunca é o suficiênte. Como se precisasse atestar permanentemente certa competência. Enfim, saudades muitas, também!
Lembro bem de você em Balsas. "O boi de catirina", que acredito ter sido seu esforço pra levar, foi marcante para mim. Assisti no Marista (eu acho). rsrs
Querido Marcelo! Eu tive e tenho muitos mestres! Você é um deles! E tenho muito orgulho de carrega-los comigo! Uns me escolheram, outros eu escolhi... o que sei é que cada encontro foi de aprendizado e me direcionou para outro... o que sei é que antes de entrar em cena...naquele momento que antecede o ato...eu sempre penso nos Meus e agradeço o encontro,os aprendizados e lhes desejo saúde e vida longa. Porque sinto que os carrego comigo em tudo que faço! Mas sei também que há aqueles que não precisam de mestres...porque são mestres de si mesmos! Essa é minha busca. Enquanto isso vou procurando estar por perto daqueles que me movem.
voltei!rs
Flavinha! Você voltou! (Risos)Palavras tão precisas quanto o seu caráter. Como digo no post, é com vocês que eu aprendo. Obrigado por deixar-me permanecer por perto.
Mas pedagógico impossível! Perde-se muito tempo tentando arremedar uma teoria. Este estupro e necessário! Parabéns!
Caro Rodrigo, é uma delícia dialogar com você por aqui. Ultimamente, nosso maior frequentador. Obrigado por prestigiar-nos com a sua presença. E apareça pessoalmente!
Que texto fantástico!
Obrigado, anônimo!
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