quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O teatro ou o jogo das ilusões


Joga bilhar. Religiosamente ao acordar, olha-se no  espelho. Observa  se  apareceu alguma espinha. Olha nos olhos  de  cor  escura. Procura  alguém. Tenta encontrar a personagem ideal para  aquele dia. Encontra com a mesma facilidade de sempre. É perfeito em tudo que faz. Sai. 

Joga bilhar. Religiosamente ao acordar, olha-se no  espelho. Conta  as rugas que persistem em não aparecer. Olha nos olhos  de  cor clara,  buscando  forças  para  conseguir viver. Pensa  em todas  as tentativas  fracassadas  que  teve. Vislumbra  outra  possibilidade, sorri e sai para mais um dia de estafante trabalho.

Joga bilhar. Ao levantar não vai ao espelho. Sai com a  cara que só ele tem. Sai sem personagem alguma.

Joga bilhar. Acorda e não se observa no espelho. Naquele dia surge  uma  ruga que não é notada. Não percebe que envelheceu e sai feliz para o trabalho.

Jogam bilhar. À noite se encontram no  salão  para  jogar. Jogam  lado a lado, mas não se conhecem. São parceiros  naquela  noite, mas não se conhecem. Simultaneamente vão ao banheiro, urinam no chão, defecam  na latrina, vomitam nos pés. Percebem o que tinham comido no almoço:  arroz, feijão e carne. Vão à pia, lavam as mãos.  Observam o espelho à frente. Enxergam-se como verdadeiramente são.  Espantam-se com  as "caras limpas" do espelho. Gritam. O espelho se  quebra. Como que  unidos  por  um único impulso, descem ao chão catando os cacos espalhados por toda a extensão do banheiro. Ferem-se. Sangram. Tudo fica  vermelho: paredes, braços, roupas. Tocam-se e não se sentem. Cacos por todo o chão. Desistem de recolher todos eles. Levantam-se e saem do banheiro, do salão, levando para casa os cacos que cataram.

No dia seguinte, juntam os cacos para comporem o espelho. E conseguem. Olham. Em cada mosaico a imagem é composta.  Ficam  felizes com  o que veem, apagando das mentes as imagens que anteriormente  se formaram nos espelhos de suas vidas.

Mal sabiam eles que as que viam eram  trocadas. A partir de então, ao amanhecer, viam um a imagem do outro. 

No passar de três dias deixam de jogar bilhar. 

Quarto dia. No necrotério local, dois corpos lado a lado, sem uma gota de sangue. Ninguém reclama os corpos. Causa desconhecida. Sem parentes, são enterrados como indigentes. Ninguém os acompanhou no enterro. O coveiro cava a cova de ambos, lado a lado.  Os  corpos descem. A terra é jogada. São consumidos, devorados pelos vermes.

Cemitério clandestino. Tiveram que exumá-los. Estavam totalmente decompostos. Só restavam os ossos e os cacos do espelho que ambos tinham engolido. 

Se alguém juntasse os cacos, veria que as imagens continuavam lá, como que vivas, sem rugas, sem espinhas,  com  olhos claros,  escuros.  Ninguém o fez. Foram novamente enterrados,  sem os cacos que  foram recolhidos e logo  em seguida  jogados fora. Só então morreram.

2 comentários:

L. S. D. disse...

O conto é o mesmo, mas o título... quanta diferença.

Cláudio Marconcine disse...

é que praga de escritor de uma obra só pega...