Joga bilhar. Religiosamente ao acordar, olha-se no espelho. Observa se apareceu alguma espinha. Olha nos olhos de cor escura. Procura alguém. Tenta encontrar a personagem ideal para aquele dia. Encontra com a mesma facilidade de sempre. É perfeito em tudo que faz. Sai.
Joga bilhar. Religiosamente ao acordar, olha-se no espelho. Conta as rugas que persistem em não aparecer. Olha nos olhos de cor clara, buscando forças para conseguir viver. Pensa em todas as tentativas fracassadas que teve. Vislumbra outra possibilidade, sorri e sai para mais um dia de estafante trabalho.
Joga bilhar. Ao levantar não vai ao espelho. Sai com a cara que só ele tem. Sai sem personagem alguma.
Joga bilhar. Acorda e não se observa no espelho. Naquele dia surge uma ruga que não é notada. Não percebe que envelheceu e sai feliz para o trabalho.
Jogam bilhar. À noite se encontram no salão para jogar. Jogam lado a lado, mas não se conhecem. São parceiros naquela noite, mas não se conhecem. Simultaneamente vão ao banheiro, urinam no chão, defecam na latrina, vomitam nos pés. Percebem o que tinham comido no almoço: arroz, feijão e carne. Vão à pia, lavam as mãos. Observam o espelho à frente. Enxergam-se como verdadeiramente são. Espantam-se com as "caras limpas" do espelho. Gritam. O espelho se quebra. Como que unidos por um único impulso, descem ao chão catando os cacos espalhados por toda a extensão do banheiro. Ferem-se. Sangram. Tudo fica vermelho: paredes, braços, roupas. Tocam-se e não se sentem. Cacos por todo o chão. Desistem de recolher todos eles. Levantam-se e saem do banheiro, do salão, levando para casa os cacos que cataram.
No dia seguinte, juntam os cacos para comporem o espelho. E conseguem. Olham. Em cada mosaico a imagem é composta. Ficam felizes com o que veem, apagando das mentes as imagens que anteriormente se formaram nos espelhos de suas vidas.
Mal sabiam eles que as que viam eram trocadas. A partir de então, ao amanhecer, viam um a imagem do outro.
No passar de três dias deixam de jogar bilhar.
Quarto dia. No necrotério local, dois corpos lado a lado, sem uma gota de sangue. Ninguém reclama os corpos. Causa desconhecida. Sem parentes, são enterrados como indigentes. Ninguém os acompanhou no enterro. O coveiro cava a cova de ambos, lado a lado. Os corpos descem. A terra é jogada. São consumidos, devorados pelos vermes.
Cemitério clandestino. Tiveram que exumá-los. Estavam totalmente decompostos. Só restavam os ossos e os cacos do espelho que ambos tinham engolido.
Se alguém juntasse os cacos, veria que as imagens continuavam lá, como que vivas, sem rugas, sem espinhas, com olhos claros, escuros. Ninguém o fez. Foram novamente enterrados, sem os cacos que foram recolhidos e logo em seguida jogados fora. Só então morreram.
2 comentários:
O conto é o mesmo, mas o título... quanta diferença.
é que praga de escritor de uma obra só pega...
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