Por anos, a compreensão e/ou a sistematização dos conhecimentos teatrais, enquanto técnica de interpretação, separava a voz do corpo do ator, mesmo porque o ator, em dado momento da história, era exclusivamente um leitor, que seguia à risca, os textos elaborados pelos dramaturgos de gabinete.
Nesse caso, a técnica vocal deveria contemplar o que lhe era exigido: dicção, cadência, afinação, volume, altura, potência, timbre, coloração, pois que o próprio canto coral na tragédia grega assim o requeria.
Entretanto, mudanças consideráveis acerca do teatro foram ocorrendo: os dramaturgos deixaram seus gabinetes e voltaram-se à cena; o ator ocupou o seu espaço; o oriente começou a interferir no modo de fazer teatral do ocidente. Com isso, a voz torna-se “um prolongamento do corpo” (BURNIER, 2001) e, em sendo, o corpo que se projeta, que age, necessita de energia; um corpo energético, absorvido por práticas teatrais do oriente; energia como “capacidade de produzir; firmeza; força” (BUENO, 2002). Então, nossa voz provém de “uma tensão dialética entre o corpo e texto” (PAVIS, 1999), e como energia, ela só se efetiva a partir do tencionamento de sua natureza dupla: anima e animus (BARBA, SAVARESE, 1995).
Animus
Enquanto “anima é uma energia suave, animus é uma energia vigorosa” (BARBA, SAVARESE, 1995). Em Artaud, essas energias repercutem na respiração e em “ANDRÓGINO (...) MACHO (...) FÊMEA” (ARTAUD, 1985).
A ação vocal não se relaciona, exclusivamente, com as palavras: “A ação vocal é o texto da voz e não das palavras”, diz Burnier.
Essa afirmativa sugere uma multiplicidade de ações em uma mesma palavra: verbalizar refresco de forma ríspida, agressiva, doce, carinhosa, silabada, por exemplo. A emissão tem que estar “em acordo com a ação cênica e não uma voz apenas dramatizada” (GAYOTTO, 1997).
As múltiplas ações de uma palavra estabelece-se mediante: a entonação, quando “diz respeito tanto ao enunciado quanto à enunciação, tanto ao sentido do texto quanto àquele do trabalho do ator, tanto à semântica quanto à pragmática” (PAVIS, 1999); a teatralização, quando evita os “efeitos de naturalidade, de psicologia ou de expressividade” (PAVIS, 1999), e mostra “claramente a localização da fala no corpo e sua enunciação como um gesto que estira o corpo inteiro” (PAVIS, 1999); a materialidade, quando corporifica no ator, seu ritmo, o discurso no espaço, a “polifonia das falas” (PAVIS, 1999); a análise, quando levanta “efeitos de velocidade ou de lentidão, a freqüência, a duração da função das pausas” (PAVIS, 1999).
Quando tratamos de emissão, estamos falando de energias que potencializadas por músculos, cartilagens e nervos, exercem a respiração. Desta feita, a ação vocal tem em si a respiração como energia potencial da ação.
Essas energias são perceptíveis, para o espectador, no ator. Caso contrário, o ator não desprende energia o suficiente para tal. No ocidente, chamamos essa energia de vida ou presença do ator. No oriente, há expressões como “prana ou shakti na Índia; koshi, ki-hai e yugen no Japão; chikara, taxu e bayu em Bali; kung-fu na China” (BARBA, SAVARESE, 1995).
As energias são ativas quando são acionadas; oscilam entre a energia animus e anima. É essa alternância de energias que fará com que o ator tenha vida no palco. Como essa manipulação de energias permite “a muitos atores fascinar e surpreender por contradizer o comportamento social estereotipado homem-mulher” (BARBA, SAVARESE, 1995), o corpo dilata e torna-se extracotidiano.
ARTAUD (1985), em seu Teatro da Crueldade, redesenha essas energias em 03 (três) tempos — Andrógino, Macho e Fêmea — e em 06 (seis) arcanos principais: equilibrado e neutro no andrógino; expansivo e positivo no macho; atrativo e negativo na fêmea, o que confirma a posição de COELHO (1994) quando diz que “o movimento correto do pulmão para a boa respiração vocal precisa ser tridimensional e não apenas antero-posterior, como a maioria das pessoas sujeitas a muitas tensões realiza” (COELHO, 1994).
Fazendo uma analogia a ambos os autores, teremos o Quadro 1:
Com esses esquemas, podemos elaborar 06 (seis) combinações respiratórias possíveis, fazendo com que cada uma delas acompanhe 1 (um) sentimento específico, i. e., a respiração materializa o sentido da palavra, do texto. Tais materializações “requalificam a palavra” (BONFITTO, 2002). Segundo esse itinerário, “a respiração responde imediatamente aos estímulos externos ou internos” (CARVALHO FILHO, 2002), pois que “os seres humanos possuem padrões respiratórios básicos que variam de acordo com os diferentes estados emotivos” (CARVALHO FILHO, 2002), como a raiva, o medo, a alegria, visto que “a voz nasce do corpo para exprimir o que nele se passa” (CARVALHO FILHO, 2002), quando isso não ocorre, não há energia, não há vida.
Próspero e o inseto daninho
E quanto ao pai? Inominável? Carinhosamente alcunhado por Próspero, ele tem em si uma respiração contida, fêmea/atrativa/negativa/abdominal-intercostal que estrutura a personagem. Evidente que as mudanças de situação fazem com que essa respiração-energia module para outros esquemas.
Essa racionalização do fazer só me é possível a partir da prática da sala de ensaio. A gente não pensa a respiração. Ela acontece. O corpo age e reage a tudo. Quando ele quer ressoa, ele o faz. Quando não, se cala, emudece.
No trabalho pré-expressivo, o masculino e o feminino são trabalhados como antagônicos. Entretanto, essa energia proveniente da respiração está em todos os demais. Teatro é respiração.
O corpo é uno em si. Então, não só os sistemas e aparelhos estão interligados, como também temos impresso em nossa memória cerebral, emotiva e muscular, experiências múltiplas pelas quais passamos e experienciamos.
É essa multiplicidade de sentires num corpo elétrico, que nos faz aptos a manipular energia em uma ação vocal e física, de forma extracotidiana, na cena.
Essa manipulação de energias suaves ou vigorosas, variando o esquema — se torácico-clavicular, costa-diafragmático ou abdominal-intercostal — nos dá uma gama de possibilidades, de alternativas para expressar, de forma não interpretativa, o que buscamos.