. rusgas e rugas, nas fotos de Ayrton Vale
Quando a pequena companhia de teatro fala da dramaturgia do ator não fala em tornar o ator um escritor de textos teatrais ou um encenador. Esse equívoco, recorrente na esfera teórica, entorpece o sentido de um ator-criador. Relega-o a uma categoria menor – como se o resgate viesse através do selo de escritor ou encenador. Não. O ator, sendo escritor ou encenador, não será necessariamente um ator-criador, um compositor de dramaturgia a partir do ator. Essa dramaturgia se dá através do treinamento, da representação, da construção da personagem, do tratamento dado ao processo criativo.
Claro que só poderei exemplificar através da nossa prática e digo: o pai, do espetáculo Pai & Filho, está além do discurso escrito, além do cenário, além da marcação. Quem constrói a narrativa pregressa da encenação e, por consequência, guia o espectador para o progresso da narrativa, são as rugas do pai, aquelas que estão lá na impressão do espectador, mesmo que não estejam fisicamente. É o peso do pai. É o perfil de um pai que consigo carrega toda a história do mundo. É o encafuar-se do filho, com seus ossos frágeis, mesmo não estando à mostra. Essa construção dramática se dá na esfera do ator. Do treinamento do ator. Pai & Filho é o espetáculo desse pai e desse filho. Como encenador, eu não conseguiria reproduzir o espetáculo em nenhuma outra situação que não com esses dois atores, porque a criação deles está intrinsecamente ligada a cada dizer ou movimento que demarca a existência da ação.
A dramaturgia do ator extrapola o texto, extrapola a encenação, ela diz – na marca dos seus corpos – da existência do invisível. É essa dramaturgia que torna viva, através do “ser presente”, toda a informação negada no teatro pelo “agora”. Ela caminha paralelamente à dramaturgia do texto ou à dramaturgia da encenação e é responsável pela formalização do dizer. Quando construídas simultaneamente, a dramaturgia do ator modifica e dá novo sentido à da encenação, gerando melhor conteúdo – ela constrói um dizer dramático a partir da sua prática.
Exemplo: na cena da refeição, quando pai e filho sentam-se à mesa para jantar, nem o texto, nem a encenação sugeriam a infantilização do filho, que, no entanto, enriqueceu a narrativa, com seu ser birrento e ensimesmado, trazendo a lembrança original de Kafka, quando narra as refeições na sua casa em tempos de infância oprimida. Aqui estamos falando da dramaturgia do ator, através do seu treinamento, do exercício de construção de um “eu, contudo de filho” – não na construção do texto, nem no pensar a cena dessa forma, e sim na construção de um ser que traz consigo a história desse filho, através do que vemos de músculos, marcas, formas e rusgas (de novo, só que diferente) aquelas que estão lá na impressão do olhar do espectador, mesmo que não estejam fisicamente. Se o ator se torna escritor – mesmo construindo o texto através de exercícios de improvisação –, pensa a encenação como mecanismo de instrumentalização do dizer literariamente produzido, mas ainda assim se submete a uma construção frágil da personagem, poderá ser um excelente encenador ou dramaturgo, mas continuará sendo um ator estéril que extrai sua dramaturgia somente do texto e não do ator, já que a matéria prima do ator-compositor é seu corpo e não sua caneta.
No nosso caso, seria oportuno indagar, se as encenações não se dão da harmonia entre as diferentes dramaturgias geradas durante a construção. E aqui somaríamos à dramaturgia do ator, do encenador e do autor, as dramaturgias do cenário, da luz, da cor, da dor... Lembrando que, para dizer, não existem só as palavras.