quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Modulando

Dia desses – não tão distante assim – conheci um homem. Tomamos juçara no Mercado da Praia Grande - São Luís, Maranhão, Brasil. Dia também de ensaio, me fiz presente. O processo se estabeleceu como de costume: alongamento, rito de chegada, aquecimento... Todo esse trilhar para conseguirmos uma recuperação da energia desprendida nos dias anteriores, fazendo com que a personagem se estabeleça viva, orgânica e estável. 

O processo criador do ator está nas entrelinhas

Stanislávski, em a Criação de um Papel, fala sobre o primeiro contato com o texto: “As primeiras impressões têm um frescor virginal. São os melhores estímulos possíveis para o entusiasmo e o fervor artístico, duas condições de enorme importância no processo criador.

Para registrar essas primeiras impressões, é preciso que os atores estejam com uma disposição de espírito receptiva, com um estado interior adequado. Precisam ter a concentração emocional sem a qual nenhum processo criador é possível. Temos que escolher o local e a hora. A ocasião deve ser acompanhada de certa cerimônia já que vamos convidar nossa alma para a euforia”. Foi assim que me preparei para o Mercado. Foi assim que me senti à mesa sorvendo a juçara. Como, então, nos ensaios, desligar uma espécie de disjuntor do que ocorrera com minha alma, tentando recuperar uma energia anterior ao encontro?

Logo a angústia teve que dar espaço para uma solução racional: Energias são voláteis. Teatro é efêmero. Ator é humano. Quer trindade mais decadente que essa? Sequer perde para o triângulo do desperdício do Decadentismo. Personagens também mudam de humor. Evidente que quando se trabalha com uma dramaturgia de autor, analisamos o texto, cada frase, cada mudança de situação, o que motiva o conflito. Entretanto, o momento da atuação é do ator.

Gosto de menosprezar o texto escrito. É que ele só terá vida se o ator soprar o vento da criação entre as linhas. Imaginemos que o pai e o filho estão atrás da porta que abre para entrarem em cena. O pai chega exaurido do trabalho que cotidianamente se repete. Qual sua motivação para entrar em casa? E se pisou em fezes de cão durante o caminho? E se naquele dia, uma bela donzela o olhou de soslaio? E se ele vendeu mais do que o dia anterior? A motivação inicial permanece, mas o ator deve ter suas próprias, enquanto ser, para dar o brilho no olhar que falta à cena. Quem não reconhece um bailarino quando vê um pelas ruas? Quem não reconhece, em cena, um ator que tem uma técnica específica, que odeia teatro físico, que trabalha a dramaturgia do ator em detrimento da do autor?

O ator sempre estará em cena. Com ele, sua ancestralidade.

Não há exaustão físico-energética, nem estabilidade nela. Se assim não fosse, não seria energia.

Naquele dia foi o ser que se apresentou à minha alma. Noutro dia, meu pé direito dolorido. Em um outro, a fisgada muscular que me deprimiu. Cada dia um encanto ou dissabor. É assim que o teatro carrega a vida para o palco. Ele continua a não se repetir porque o ator não se repete. Ele capta o cotidiano e o transforma em material de trabalho. A personagem ganha vida, o ator se angustia e o espectador insiste em se ausentar, achando que não é sua seara, mas o teatro, esse sim permanece.

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